sábado, 17 de janeiro de 2015

Licença para matar

Em uma entrevista ao jornal suíço ‘Der kleine Bund’ dessa semana [*], o psicoanalista suíço Peter Passett esclareceu a natureza dos atos de violência como os ocorridos recentemente em Paris na sede do semanário ‘Charlie Hebdo’. 

Passett explica que a violência é uma parte importante de toda cultura que reprime os instintos violentos. Todo ser humano tem uma predisposição à violência. A prática da violência tem um aspecto lúdico e ao mesmo tempo existe uma inibição dessa prática. O tabu da matança entre os membros da mesma espécie existe em todo o mundo animal. 

No mundo da cultura, esse tabu é reforçado por normas que proíbem o homicídio. Mas, as mesmas instituições que ditam as normas também criam as exceções. 

As religiões são as principais fornecedoras das racionalizações que explicam porque em certos casos pode-se celebrar o homicídio e a violência. O Cristianismo não é diferente do Islam e de outras religiões.  Na Bíblia está escrito algo como: ‘eu não vim para lhes trazer a paz, senão a espada’. Este também é um aspecto do Cristianismo. 

As pessoas nas quais falta o efeito da repressão da violência e que encenam e celebram a violência, quase sempre apelam para alguma desculpa. As justificativas para seus atos são fornecidas pelas religiões e as ideologias políticas. Elas são racionalizações através das quais as pessoas buscam libertar-se da repressão e assim também da responsabilidade. Não importa se isso acontece em nome de uma religião ou de uma ideologia política. 

A matança de Paris não tem nada a ver com o Islam. Nos livros de todas as religiões existem passagens onde se incita à violência. Os cristãos justificaram as cruzadas com o Novo Testamento. Só no Budismo encontra-se um texto menos explícito com relação à prática da violência. Todas as religiões fornecem desculpas para legitimar as atividades violentas. Nas chamadas culturas cristãs, a religião perdeu esse significado central e cedeu lugar para as ideologias extremistas de ‘direita’ e ‘esquerda’. No final de contas, as ideologias servem ao mesmo propósito. A violência deve ser justificada, e como isso não pode acontecer a partir de dentro dos indivíduos, procura-se uma instância externa que permita isso. 

Passett não acredita que os matadores dos editores do ‘Charlie Hebdo’ tenham se sentido desrespeitados pelos caricaturistas. Os que realmente se sentem existencialmente feridos não atacam ou matam. Eles sofrem calados. Os autores da chacina não devem ser chamados de ‘lutadores’, senão de ‘criminosos’, e como tal não são melhores que qualquer outro criminoso. Ao se trazer o fundo religioso para a tona e entender isso como motivo, só se enobrece esses criminosos. 

A melhor receita contra a violência é o pensamento racional, mas até esse pensamento é relativamente fraco quando comparado às emoções.  O pensamento racional deixa-se facilmente apossar. O problema da elucidação é que ela quer trazer as pessoas à razão, mas essas sempre fazem mau-uso da elucidação para justificar suas paixões. O fino verniz de civilização pode quebrar a qualquer momento. De lá onde se ouve o grito de triunfo da razão e da tolerância o oposto não está longe. Todas as pessoas têm um profundo conhecimento do que é bom ou mau. O famoso experimento de Milgram mostrou que essa capacidade pode ser facilmente mutilada. Quando pessoas normais recebem a autorização para matar seus semelhantes, elas obedecem prontamente. 

A violência, mesmo quando facilitada a partir de uma fonte externa, vem mesmo de dentro da própria pessoa. Por isso é que as pessoas precisam domesticar a si próprias e a sua prontidão à violência. Isso é tarefa da cultura. 

Sempre existe uma oportunidade para praticar a violência. Quando europeus viajam para a Síria para se juntar ao chamado EI, isso não é outra coisa que uma oferta para a violência: aqui você pode ser um verdadeiro lutador, aqui tudo é permitido. Esse comportamento é legitimado por pseudo-explicações e interpretações baratas do mundo. A Legião Estrangeira também foi, em parte, uma instituição desse tipo, uma que dava licença para matar. 

Hoje o chamado ao Islam é usurpado como um lubrificante para a agressão. Mas, mesmo esses assassinos sabem que cometem atos indecentes e por isso precisam gritar: ‘Nós vingamos o profeta’. 

No final de contas, o que fica é a responsabilidade que ninguém pode tirar de outrem – nem a religião, nem a ideologia. Sempre fica algo de muito pessoal, se o indivíduo arca com suas responsabilidades ou não, e se ele está pronto ou não a se perguntar, em cada situação: eu devo? eu quero? eu posso? Aqui a educação desempenha um papel muito importante. Em vez de educar as crianças para obedecer, elas devem ser sempre orientadas que elas próprias devem fazer suas escolhas e arcar com as responsabilidades. Com isso não se conseguirá reprimir o instinto da violência. Trata-se simplesmente de civilizá-lo tanto quanto possível.
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[*] Gewalt hat etwas Lustvolles. Der Kleine Bund. Mittwoch, 14. Januar 2015.

To be or not to be, Charlie

Por P.M. Serrano Neves, postado no Facebook em 12.01.2015

Os franceses que tanto contribuiram para a teoria do ''abuso de direito'' surpreendem-me com uma hipótese híbrida de liberdade de expressão com liberdade de imprensa que sustentam não ter limites.
Meu raciocínio cartesiano prejudica que possa compreender tal construção, à vista de que o Universo e a Natureza não apresentam nenhum caso de liberdade cujo exercício não esteja sujeito ao preço da temeridade quando limites são ultrapassados.

O satélite ...que pousou em um cometa - evento recente - obedeceu estritamente a todos os limites impostos pela regência cósmica.

Primeiro é preciso perceber que a immprensa é tão mais livre quanto mais tenha dinheiro para colocar sua mídia em circulação e tão menos livre quanto tal dinheiro carregue uma ideologia. Estes são os limites funcionais.

Segundo, é preciso perceber que expressão é o ato de dar a conhecer alguma coisa por orientação de alguma vontade.

Terceiro, é preciso concluir sobre a conformidade da coisa com a vontade e com a expressão.

Quarto, é preciso não se render à ''impressão que isto me causa'', o que é mais comum do que se imagina, dada a variação do corpo de conhecimentos e a diversidade das constantes de deformação da percepção.

E para justificativa do que pensamos e fazemos invocamos a liberdade de pensamento e expressão, e as contrariedades e contradições ficam por conta do ''somos humanos''. Este é ponto: somos humanos, tão humanos quanto os conturbados cenários que conseguimos produzir por todos os cantos do Planeta. Ainda não sabemos como ser melhores do que somos e, a cada dia, lenta e gradualmente, ir reconhecendo que as liberdades e direitos que reivindicamos exercitar são comuns de todos e que o direito de um acaba onde começa o direito de outro. Ainda não cremos que a diminuição do mal em um grau apenas constitua um abrandamento sensível do calor gerado pelo atrito nas relações humanas. E se ainda não sabemos nem cremos é porque não podemos, com o conhecimento atual, resolver as complexas equações do relacionamento humano.

O satélite pousou no cometa mas continuamos tão estúpidos quanto o deslumbramento com os feitos da inteligência nos cega em relação à existência de um humano próximo igual a cada um de nós mesmos, e tantos humanos próximos quantos devam existir para que a compreensão da existência da humanidade como uma entidade seja alcançado.

Je suis que nous sommes tous.

Ubuntu.