Brasília: O Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou nesta quinta-feira (26.04.12) a constitucionalidade do sistema de cotas raciais adotado pelas universidades públicas brasileiras.
Heidelberg, Alemanha, Abril de 2012.
Por Sergio Ulhoa Dani
A ciência genética há muito tempo concluiu que o conceito de raça humana é errado, arbitrário e inútil. As diferenças genéticas entre as pessoas e os povos são pequenas e fluidas demais para justificar as divisões de raças. Mas, existem os racistas, os que não acreditam em ciência, e estes também fazem parte da realidade social.
Os juízes da mais alta corte do Brasil, por exemplo, não ligam para a genética ou a inutilidade do racismo. Para eles o que vale é a psicologia que ensina, quando há um conflito entre crença e realidade, o comportamento humano orienta-se pela crença. Esse mês de abril de 2012, os magistrados decidiram por unanimidade que as universidades públicas brasileiras devem oferecer cotas raciais. Acreditam que as cotas raciais podem corrigir certas distorções sociais causadas pelo vício que a sociedade brasileira racista e escravagista tem, de discriminar as pessoas de acordo com sua aparência física ou origem étnica ou social. Entre essas distorções, estaria o número relativamente menor de negros entre os estudantes das universidades, comparado ao número de brancos, por exemplo. Citam-se também as evidências complementares: mais negros relativamente aos brancos na população carcerária, maioria negra entre os 10% mais pobres, etc.
Louvável a intenção dos juízes, mas qual é o efeito prático do seu gesto de fé de estatura isabelana, aos 124 anos da Lei Áurea? Como conciliar a crença e a intenção com a realidade? Como garantir a função social da universidade pública brasileira, agora em ritmo de apartheid?
Os conflitos entre a realidade e a crença são inevitáveis. O primeiro deles é o da afirmação racial, condição que dá ao candidato o direito de disputar uma vaga de cota racial no processo de admissão a uma universidade pública. A população brasileira é das mais mestiças do mundo, senão a mais mestiça. Estudos genéticos conduzidos por cientistas de diversas nacionalidades, crenças e etnias comfirmam a contribuição genética equivalente de diversas populações européias, ameríndias, africanas e, em menor proporção, asiáticas para a formação da população brasileira. A cor da pele, uma das características externas mais propensas à discriminação, tem um poder discriminatório genético relativamente baixo. Por exemplo, diversos estudos mostram que grande parte dos brasileiros de pele negra possui proporção mais elevada de genes europeus ou ameríndios, que africanos. E muitos indivíduos de pele branca possuem uma proporção maior de genes de origem africana, que européia. Em outras palavras, “todo negro é descendente de africanos, mas nem todo descendente de africano é negro”.
Os testes de DNA estão disponíveis para qualquer cidadão interessado em conhecer a sua constituição genética. Essa realidade entra em conflito com a política do novo apartheid universitário brasileiro. Qualquer cidadão brasileiro poderia argumentar, com base nos genes que carrega, que pertence a uma determinada “raça”, portanto teria direito a disputar uma cota racial. Os mais crentes poderiam até argumentar que pertencem a “diversas raças”, ou à “raça mestiça”. Para contornar a confusão que se formou, adota-se a “auto-afirmação” como único critério válido para a afirmação racial, dispensando a confirmação dos testes genéticos. A crença, em lugar da ciência. Quem se declara “negro” ou “índio”, ou representante de outra raça qualquer pode disputar uma vaga da cota racial com seus “iguais” (por “iguais” entendam-se os indivíduos auto-afirmados “minorias raciais menos favorecidas”, igualados na discriminação racial de que são vítimas).
Para evitar abusos, as Universidades teriam que instituir comitês ou repartições administrativas para emitir “atos de confirmação racial”. Esses atos de estatura nazista ou inquisicionista anulariam o princípio da auto-afirmação, base das "políticas afirmativas", então a simples existência desses comitês discriminatórios seria um crime de “racismo”.
Fechando os olhos para a genética e para os abusos de toda sorte, teremos então disputas por vagas de dois tipos ou cotas para um mesmo curso superior oferecido pela universidade pública: a “cota regular” e a “cota racial”. Partindo do princípio que os disputantes conhecem e aceitam essas regras não haveria, em princípio, problema na esfera administrativa dos concursos. O problema é de natureza social, e diz respeito ao que alguns autores chamam de “discriminação reversa”, outros chamam de “discriminação compensatória” e eu especifico como a discriminação dos “excedentes qualificados”. Esses novos discriminados são os candidatos que demonstram desempenho suficiente nos testes de admissão, mas não são admitidos por causa do regime de apartheid racial vigente. Uma solução para essa forma de discriminação seria estabelecer o critério eliminatório, em vez do classificatório, para ingresso ao estudo superior. Esse critério deveria ser válido para os dois tipos de cotas. Pelo critério eliminatório, candidatos que não obtêm o mínimo de desempenho nos testes de admissão - por exemplo 60% das respostas corretas - não seriam aprovados, ainda que houvesse vagas disponíveis para serem preenchidas na respectiva cota.
Mas, o critério eliminatório entra em conflito com o sistema das cotas raciais, pois se as “minorias raciais menos favorecidas” fossem tão preparadas como os “concorrentes regulares”, elas teriam um desempenho competitivo nos testes de admissão e não haveria necessidade das cotas raciais. Isso significa que, na vigência das cotas raciais, sempre haverá “excedentes qualificados”. Ora, negar uma vaga no ensino superior público e gratuito para quem é qualificado independente da sua “raça” não é um expediente aceitável em uma sociedade justa, democrática, solidária e livre. Uma solução seria fazer o “aproveitamento dos excedentes”, criando mais vagas nas universidades. Solução semelhante foi adotada principalmente a partir dos anos 60 no Brasil, visando atender às demandas da classe média do “milagre econômico” gerando uma inflação de vagas, queda na qualidade do corpo discente e deterioração do ensino superior, como um todo. Um dos resultados desse processo de massificação é que a demanda por um ensino superior de qualidade não é mais atendida pelo setor público.
A qualidade de uma escola é definida em grande parte pela qualidade dos corpos discente e docente. Mas, criar e preparar os melhores custa muita dedicação, paciência, constância, tempo e alocação prioritária de valores e recursos geralmente escassos. O processo de seleção para admissão nas universidades públicas é simplesmente o funil que seleciona e certifica a melhor adequação para o ensino superior, geralmente com base no desempenho em testes de admissão. Esse processo não tem o poder de preparar os indivíduos. Quem prepara os indivíduos são os profissionais dos ensinos fundamental e médio. A dura realidade que a decisão dos supremos magistrados brasileiros não consegue ocultar é que os ensinos fundamental e médio vão de mal a pior no Brasil. Em vez de darem respostas honestas e soluções eficientes, os magistrados legalizam um tipo de “política afirmativa” que já faz aprovação automática nos ensinos fundamental e médio, e distribui bônus e cotas raciais para ingresso ao ensino superior (algumas universidades federais adotam o sistema de bônus, acrescentando à nota dos alunos oriundos de escolas públicas 10% ou 15%). Não dão importância aos estudos conduzidos em vários países, que indicam pouco ou nenhum efeito das políticas afirmativas raciais nos níveis fundamental e médio, e uma deterioração no nível superior, muitas vezes justificada ou confundida com o “aumento da diversidade”.
Trata-se de uma crise de valores, em que menos vale mais. Expedientes como a aprovação automática, a distribuição de bônus e as cotas raciais não resolvem as injustiças sistêmicas cometidas contra milhões de crianças brasileiras de todas as cores, classes, credos e culturas, discriminadas pela negligência do Estado onde ele deveria atuar, e a insuficiência da iniciativa privada onde ela não precisaria atuar. E tampouco resolve o problema da carência de profissionais qualificados de todos os níveis e extensões e qualidades, sem os quais não existe bem-estar sócio-ambiental, diversidade e evolução cultural.
Como toda política de apartheid, as cotas raciais atendem aos interesses de uma minoria privilegiada e bem organizada no presente, sem atender às demandas da maioria desfavorecida, difusa e discriminada sem se dar conta. Mas, à cota dada não se abre a boca.
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