terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A universidade em ritmo de barbárie, vinte e cinco anos depois.

A universidade em ritmo de barbárie, vinte e cinco anos depois.


Por Sergio U. Dani, de Göttingen, Alemanha, 28 de dezembro de 2010.


‘C'est pire qu'un crime; c'est une faute.’ (É pior que um crime; é um erro.).
Joseph Fouché (1759-1820), estadista francês.


‘A Universidade em Ritmo de Barbárie’ é o título de um livro do filósofo José Arthur Gianotti, publicado em 1986 pela Editora Brasiliense. No ensaio, Gianotti denunciava o processo de degradação pelo qual passava a universidade brasileira, que recuava rapidamente em qualidade, objetividade e função social: ‘Se não se apostar no poder acadêmico, se não se lhe abrir um espaço próprio, a universidade será enervada por suas convulsões. E como o país não pode dispensar institutos de pesquisa que alimentem o desenvolvimento tecnológico, e escolas que formem suas elites, ela será marginalizada e posta em banho-maria, enquanto uma burocracia ilustrada, apoiada no estado, tratará de criar centros de excelência destinados a cumprir as tarefas que a universidade não soube desenvolver. Uma enorme rede de ensino universitário servirá para enganar a demanda das massas, enquanto o verdadeiro conhecimento tomará outros rumos’, profetizava.



Passados vinte e cinco anos, pode-se dizer que a profecia de Gianotti está parcialmente cumprida. A universidade brasileira encontra-se num estado de barbárie, conforme ele já previa. Enfrenta sérias dificuldades para atrair, formar e fixar quadros de elite, necessários para o exercício das suas funções sociais. Assim perde valores, espaços, autonomia e prestígio, marginaliza-se, torna-se subserviente e refém do capital, da burocracia governamental e de seitas políticas, e finalmente meretriz. Que a segunda parte da profecia que previa a criação de centros de excelência por uma burocracia ilustrada apoiada no estado, numa espécie de reação à barbárie, simplesmente não tenha se verificado somente reforça a tese da barbárie.


A barbárie pode ser definida como a diminuição ou degradação do espaço público, com a sobreposição dos interesses privados sobre este, e o conseqüente avanço do totalitarismo de esquerda ou de direita, que são formas de exercício do poder que não respeitam as regalias do povo ou as prerrogativas da sociedade livre, justa e solidária.


A barbárie é sistematicamente tolerada por uma sociedade que está condicionada a temer represálias violentas, de modo que a barbárie cria as condições para sua perpetuação:


“Como diz meu guru Omar Motteiro: ‘Quem tem CPF tem medo’, na interpretação do provérbio popular que só usa duas letras. Quinhentos e alguns anos de manda quem pode e obedece quem tem juízo formaram a cultura da ‘indignação mitigada’, de tamanho suficiente para não ser alvo de retaliação, no que dou razão. Dou razão porque todos parecem querer manter o CPF intacto, mas enquanto os CPFs individuais são preservados, o governo ataca o CPF global, de tal sorte que ninguém pode identificar como sendo o seu. É uma das expressões perversas da igualdade: se é para o mal de todos e danação geral, diga ao povo que faço e aconteço. Chega de tratar os governos a pão de ló, sirvamos-lhes o angú com pelanca do cotidiano do povo. (...) Compreendo que a cultura não dá saltos. Acuados pelo manda quem pode obedecemos porque temos juízo e jamais usaremos palavras que possam ricochetear na nossa ‘cacunda’. Falta disposição para ‘meter o ferro no boneco’, e de consenso em consenso, a cada nova chance que se dá ao governo para ‘tomar juízo’ mais ele é o ferro e mais nós somos o boneco.” [Paulo Maurício Serrano Neves, Procurador de Justiça Criminal do Estado de Goiás, comunicação pessoal, dezembro de 2010].


Escolho aqui alguns casos simbólicos da barbárie de que tenho conhecimento de protagonista ou testemunha. Os casos retratam momentos corriqueiros da vida universitária: o trote, as contratações, as pesquisas, as consultorias, a política de C&T e o estado das consciências.


Logo na entrada, o trote – Logo que comecei a lecionar no departamento de genética da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) de Ribeirão Preto, em 1998, tive que expulsar da sala de aula alguns veteranos de medicina que aplicavam trote. O trote é uma violação aos direitos humanos e como tal não pode ser tolerado, seja a que título for: ‘brincadeira’, ‘tradição’, ‘confraternização’. Para minha surpresa, fui repreendido por meus colegas professores e chefes do departamento que consideraram a minha atitude contra os troteiros de ‘violenta’ e ‘não acadêmica’. Apenas uma colega corajosa, a Professora Lúcia Martelli, e o antigo chefe do departamento, o Professor Warwick Estevam Kerr, àquela época já aposentado e servindo em outra universidade, apoiaram minha atitude. Alguns meses depois, um caso mais dramático virou o foco da imprensa nacional. Em fevereiro de 1999, Edison Tsung Chi Hsuen, calouro do curso de medicina da USP morreu afogado durante um trote na piscina da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz aplicado pelos estudantes Frederico Carlos Jaña Neto, Ari de Azevedo Marques Neto, Guilherme Novita Garcia e Luís Eduardo Passarelli Tirico. Esses estudantes eram veteranos do curso de medicina da USP e foram denunciados pelo MP (Ministério Público) do Estado de São Paulo por homicídio qualificado, por afogamento, com dolo (intenção) eventual, pois não procuraram o resultado morte, mas acabaram assumindo o risco de produzi-la com seus atos. Em setembro de 2006, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) mandou trancar a ação penal movida pelo MP contra os denunciados. O STJ entendeu que a morte não passou de ‘uma brincadeira – de muito mau gosto – em uma festa de estudantes’, não existindo elementos para se responsabilizar alguém por ela, nem ‘justa causa a embasar a denúncia do MP’. As atitudes de tolerância de estudantes, professores e juízes contribuem para manter viva a tradição bárbara do trote na universidade.


Nas contratações, o pacto – Isso faz parte da rotina acadêmica brasileira: abrem-se milhares de concursos para contratação de professores e técnicos para povoar as universidades e institutos brasileiros, mas os concursos não são anunciados para a comunidade científica internacional. É como se houvesse um consenso tácito de que o Brasil não é um país atrativo para uma carreira científica ou técnica recompensadora, e pior, cria-se a ilusão de que o Brasil é auto-suficiente em recursos humanos qualificados (seria um caso único no mundo). Uma pesquisa de anúncios de processos seletivos em andamento para preenchimento de vagas de cientistas e técnicos realizada no site da revista Nature [1,2] na data de hoje retorna mais de 1500 anúncios para a Europa, a Alemanha liderando com 383 anúncios, e mais de 500 anúncios para a América do Norte, os Estados Unidos liderando com 542 anúncios. Nesse mesmo dia, o site da revista Science [3] retorna mais de 3000 anúncios para a América do Norte, 370 anúncios para a Europa, 166 anúncios para a Ásia, mas apenas 8 anúncios para a América do Sul e 2 anúncios para a África. Dos 8 anúncios de processos seletivos no Brasil retornados pela pesquisa feita no site da Nature no mesmo dia, 5 anúncios são da transnacional Monsanto, resultado semelhante ao da pesquisa feita no site da Science. A falta de transparência nas contratações em ciência e tecnologia reproduz o mapa do subdesenvolvimento humano e revela o enclausuramento da universidade em torno de uma disputa por cargos. Essa falta de transparência favorece a contratação e titulação de ‘candidatos da casa’, criando um regime feudal que embota a criatividade e a inovação, favorece o clientelismo e a política de privilégios e troca de favores, desaguando muitas vezes no ‘pacto corrupto’. Os melhores talentos não encontram campo propício para se desenvolver nesse regime, e não se trata de uma crise de oportunidade, e sim de uma crise de valores. O crescimento da economia e a expansão na rede de ensino universitário, que abrange faculdades, escolas técnicas e universidades, bolsas de estudo e títulos de mestrado e doutorado, tão enfaticamente anunciados como conquistas dos dois governos Lula não têm servido tanto para atrair, desenvolver e fixar os melhores talentos no Brasil, quanto para ‘enganar a demanda das massas’, como profetizou Gianotti [4]. Os que não se deixam enganar tomam outros rumos, no país ou no exterior. Durante os dois governos Lula, mais de meio milhão de brasileiros deixaram o Brasil [5], configurando um recorde histórico das taxas de emigração. A maioria, senão a totalidade dessas pessoas estava em idade produtiva quando emigrou. Se 20% dessas pessoas são de nível superior, estamos falando de cerca de 100 mil pessoas qualificadas e em idade produtiva que conseguiram colocação profissional no exterior. Quantas dessas pessoas poderiam dar contribuições importantes para a sociedade brasileira, trabalhando em universidades, institutos e empresas de base tecnológica no Brasil? Quantos profissionais qualificados poderiam imigrar para o Brasil não fora a nossa universidade em ritmo de barbárie? Apesar de tantas faculdades, institutos, universidades e vagas, não temos os quadros bem formados de que precisamos para desenvolver o nosso país e o nosso povo.


Corrupção em alta, qualidade da pesquisa em baixa – Um método usual de avaliação do desempenho na ciência ou ‘cientometria’ consiste na contagem das citações de artigos científicos pelos pares. Em 2009, a Science Watch fez um levantamento dos artigos científicos mais citados dos 20 países com mais citações [6]. A Suíça despontou como o país com a média mais alta de número de citações por artigo (14,85), seguida pelos Estados Unidos (14,28), Dinamarca (13,77), Holanda (13,59), Escócia (13,39), Suécia (12,94), Inglaterra (12,92), Canadá (11,68), Bélgica (11,64), Alemanha (11,47), Israel (11,04), França (10,82), Austrália (10,42), Itália (10,25), Japão (9,04), Espanha (8,91), Coréia do Sul (5,76), China (4,61), Índia (4,59) e Rússia (4,10). Embora o Brasil tenha uma economia maior e mais recursos naturais que a maioria desses países, o Brasil ainda não figura entre esses países líderes da produção científica de alto impacto. Muitos atribuem o mau desempenho brasileiro à falta de investimento do governo, por isso quando a administração Lula anunciou um aumento da fatia do Produto Interno Bruto (PIB) para investimento em Pesquisa & Desenvolvimento (P&D), houve quem sinceramente esperasse melhores dias para a ciência no país [7]. Intuitivamente, acredita-se que aumentos na cota do PIB estimulem o crescimento das atividades de P&D, de forma que é aconselhável, em princípio, não se opor aos gastos do governo com P&D. Entretanto, a cota do PIB investida em P&D é inferior a outros índices, incluindo o Human Development Index (HDI) das Nações Unidas (UNO), e os índices de percepção de corrupção da Transparency International, Bribe Payers Index (BPI) e Corruption Perception Index (CPI) como indicadores da qualidade da ciência em um país (Figura 1).




Figura 1. Fatores que afetam a qualidade da ciência em 20 países, conforme avaliado pela média do número de citações por artigo científico publicado: a proporção do PIB destinada a gastos com P&D correlaciona-se fracamente (R2 = 0,1707), enquanto HDI, BPI e CPI correlacionam-se fortemente (R2= 0,529, 0,7604 e 0,7223 respectivamente) com a qualidade da ciência nos países no topo do ranking (dados obtidos das refs. [8-12]. Sobre os índices BPI e CPI: A Transparência Internacional estabelece notas de zero a dez para os países. A pontuação mais próxima de zero indica que um país é visto como muito corrupto, enquanto os que se aproximam de dez são classificados como menos corruptos.)


Ninguém duvida que a corrupção e o HDI correlacionam-se com a qualidade da ciência em sentidos opostos. Mas a fraca correlação entre qualidade da ciência e proporção do PIB alocada para P&D lança dúvida sobre a noção de que a ciência melhora com o PIB. Para melhorar a ciência no Brasil ou em qualquer outro país, será preciso muito mais do que uma generosa fatia do PIB. Será preciso dar passos concretos para tornar as instituições mais transparentes, atrativas e eficientes, de modo que conexões pessoais e redes informais não sejam necessárias para obter serviços. Conforme observado por Ted Goertzel [13] e confirmado pelo monitoramento da Transparency International [14], a administração Lula e seu Partido dos Trabalhadores (‘PT’), bem como administrações anteriores nunca tomaram medidas para combater a corrupção no Brasil; pelo contrário, eles usaram a corrupção como uma ferramenta para a reforma social. Isso mina a esperança de dias melhores para a ciência brasileira.


Consciências compradas – Em 2007, um tanque de óleo Diesel vazou em um posto com a bandeira Petrobrás, contaminando o lençol freático na cidade de Paracatu, noroeste de Minas Gerais. O Ministério Público pediu-me para averiguar. Procurei uma das autoridades brasileiras em geomorfologia, um professor-doutor titular da Universidade Federal de Minas Gerais que se negou a prestar consultoria no caso, alegando conflito de interesses por ser consultor da Petrobrás. Conheço outros casos semelhantes de professores-doutores de universidades públicas que recebem salários pagos com dinheiro público e também atuam como técnicos de aluguel de grandes corporações que causam gigantescos danos sócio-ambientais. Mas pagam bem, e ‘pagando bem, que mal tem?’ Caso paradigmático é o da transnacional canadense Kinross Gold Corporation, autora de verdadeiro genocídio apoiado por um punhado de pessoas que se apoderaram do Estado e profissionais pertencentes aos quadros da universidade que engordam seus ‘empregos e rendas’ com os pagamentos-extras da transnacional [15-18]. Consciências compradas são consciências inúteis, refugiam-se nas suas zonas de conforto, mergulham em uma espécie de delírio e dependência que as impede de perceber e praticar a função social da ciência.


Os casos apresentados são ilustrativos de alguns dos graves problemas que a universidade e a sociedade brasileiras enfrentam. A apresentação dos casos não é feita no sentido de desencorajar a ciência no Brasil, pelo contrário, ela é feita no sentido de compreender as razões dos nossos maus desempenhos em ciência, tecnologia e cultura, e assim encontrar soluções para esses problemas.


A corrupção nas suas diversas formas é o fator que mais prejudica a ciência, fomentando a ignorância, a injustiça, a prepotência e a violência. Será preciso mobilizar a reserva moral da sociedade brasileira para o projeto de civilizar a universidade e a sociedade.




Referências e notas:


[1] http://www.nature.com/naturejobs/


[2] Vagas anunciadas pelos países do ‘BRIC’ no site da revista Nature na data de hoje: China (101), Índia (84), Brasil (8) e Rússia (0). Em termos relativos à grandeza da população de cada país: China e Índia (1 vaga para 10 milhões de habitantes), Brasil (0,5 vaga para 10 milhões de habitantes) e Rússia (0). Comparativamente, a Alemanha anuncia quase 100 vezes mais que o Brasil (mais de 46 vagas por 10 milhões de habitantes).


[3] http://scjobs.sciencemag.org/JobSeekerX/


[4] É paradigmático o fato ocorrido dia 17 de dezembro de 2010, na UNICAMP, considerada uma das melhores universidades do país. Nesse dia, o senador Aloízio Mercadante e futuro ministro da Ciência e Tecnologia escolhido por Dilma Rousseff defendeu sua tese de doutorado sobre a política econômica do partido do governo ao qual ele pertence. Segundo colegas da UNICAMP, foi uma tese sem mérito científico, mas isso não impediu que a UNICAMP a aprovasse, conferindo ao político o título de doutor. A indicação de Mercadante para chefiar o Ministério da Ciência e Tecnologia causou surpresa até para Miguel Angelo Laporta Nicolelis, um médico e cientista brasileiro radicado nos Estados Unidos, que havia apoiado enfaticamente o governo Lula e a candidata petista vencedora das eleições presidenciais de 2010. Leia também: Regalado, A. 2010. Brazil's Science Ministry Goes From Physicist to Politician. Science, 10 December 2010. http://news.sciencemag.org/scienceinsider/2010/12/brazils-science-ministry-goes.html


[5] http://oglobo.globo.com/economia/mat/2010/10/02/forte-expansao-da-economia-no-pais-nao-evita-emigracao-de-meio-milhao-de-brasileiros-922686737.asp


[6] ScienceWatch (2009). Country profiles, 2009: 1998-August 31, 2008. Available at [http://sciencewatch.com/ dr/cou/2009/09janALLPAPRS]. Accessed November 3, 2009.


[7] Petherick, A. High hopes for Brazilian science. Nature 465, 674-675 (2010) doi: doi:10.1038/465674a


[8] UNDP, Human Development Reports. Available at: http://hdr.undp.org/en/statistics/


[9] National Science Foundation, Science and Engineering Indicators (2008), available at: http://www.nsf.gov/statistics/seind08/


[10] OECD, Main Science and Technology Indicators (2006), available at: http://www.oecd.org/statsportal/0,3352,en_2825_293564_1_1_1_1_1,00.html


[11] Transparency International Corruption Perceptions Index (CPI) 2009, available at: http://www.transparency.org/policy_research/surveys_indices/cpi/2009/cpi_2009_table


[12] Science Watch Country Profiles (2008). Available at: http://sciencewatch.com/dr/cou/2008/08decALL/


[13] Goertzel, T. Public policy in Brazil under Lula: corruption as a tool for social reform. Meeting of the Latin American Studies Association, San Juan, Puerto Rico, March 15 (2006). Available at: http://crab.rutgers.edu/~goertzel/CorruptionSocialChange.pdf


[14] Percepção da corrupção piorou durante o governo Lula. O país obteve nota 3,7 em escala de zero a dez e ocupa 69ª posição na lista. Leia: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/brasil-tem-mau-resultado-em-ranking-que-monitora-corrupcao


[15] http://alertaparacatu.blogspot.com/2010/12/fala-do-dr-sergio-u-dani-no-plenario-do.html


[16] http://alertaparacatu.blogspot.com/2010/09/kinross-convida-incompetentes-para.html


[17] http://sosarsenic.blogspot.com/2009/10/dear-professor-bradshaw.html


[18] http://sosarsenic.blogspot.com/2010/11/letter-to-professor-alastair-summerlee.html

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