Por Sergio U. Dani, de Heidelberg, Alemanha, 29 de maio de 2011.
Você sabe o que é 'independência funcional'? Significa que o 'promotor de justiça tem liberdade para atuar, sem ingerências da administração superior'. Essa foi a explicação dada por um promotor de justiça para o estranho ato de um colega dele que atua na comarca de Paracatu, uma cidade de 90 mil habitantes no interior de Minas Gerais. O promotor da comarca pediu ao juiz o encerramento de uma ação civil pública de precaução e prevenção contra a mineradora transnacional Kinross Gold Corporation que está poluindo o ambiente, acabando com as águas potáveis e matando gente na cidade, para tirar ouro da rocha e mandar para fora do país.
Explico. Nós entramos com a ação civil pública em 2009 e fizemos um pedido para a manifestação obrigatória do ministério público já na inicial. O promotor de justiça calou, mas o juiz do fórum reformado pela mineradora falou. A fala do juiz foi para encerrar logo a ação, sem julgamento de mérito. Não conseguiu porque o tribunal de justiça em Belo Horizonte acatou nosso recurso. O desembargador do tribunal corrigiu o erro do juiz, mas nessa brincadeira perdemos um ano. Um ano em que perderam-se mais vidas, perdemos mais um vale com fontes de água limpa e potável, ganhamos um ambiente mais degradado e poluído irreversivelmente pela mineradora transnacional genocida. Mas a mineradora ganhou tempo, e para quem 'tempo é dinheiro' - e com a onça do ouro valendo mais de mil dólares - o negócio foi excelente para os amigos-da-onça. Tempo e vidas perdidas de uns, tempo e dinheiro ganho para outros.
Lá se vão dois anos e só agora o promotor de justiça de Paracatu lembrou-se de usar sua 'independência funcional' para, a exemplo do juiz em 2009, também pedir o encerramento da ação. Pedir encerramento de uma ação contra poluição e morte sem julgamento de mérito é por si só um ato muito esdrúxulo. Mas, quatro meses antes a promotoria tinha assinado um 'termo de compromisso' com a mineradora genocida. Pelo compromisso, a mineradora promete que cumpre a lei e de quebra ainda faz um pagamento em dinheiro para a promotoria. Comparando a origem, o valor e destino desse dinheiro com as gigantescas perdas e os danos irreversíveis causados pela mineradora e as necessidades de precaução e prevenção, mais parece uma espécie de indulgência plenária comprada pela mineradora para não ser incomodada. Resultado certo: mais uma vez, tempo e vidas perdidas de muitos, tempo e dinheiro ganho para um punhado. A mineradora continua a poluição e a matança, a onça do ouro continua subindo para mais de 1500 dólares e os amigos-da-onça felizes como nunca.
Mais uma vez nós fizemos a nossa parte e retrucamos a imperícia do promotor da cidade tomada de assalto pela mineradora transnacional. O representante do ministério público esclarece que a 'independência funcional' encontra seus limites na ordem jurídica vigente e avisa que os insatisfeitos com a transação podem recorrer à corregedoria-geral do ministério público. Inútil dizer que aquilo não foi independência, nem exercício da função constitucional do ministério público. Não se sabe ao certo o que seja. Talvez nem a corregedoria queira saber. O que é certo e sabido é o velho e conhecido resultado do genocídio: tome a morte de muitos daqui, receba o dinheiro dos poucos de acolá.
A manifestação do ministério público foi assinada pelo promotor de justiça da comarca de Paracatu dentro da sua 'independência funcional'. Mas, que ninguém se iluda: a responsabilidade do ato ou a falta dela - tudo depende da ótica de quem vê, a ótica do povo danado ou a dos capitalistas felizardos - foi do ministério público, não simplesmente de um 'independente funcional do ministério público'.
Os médicos que lidamos com a vida todo dia também temos 'independência funcional', felizmente dentro dos limites do conhecimento e da ética médica. A diferença social entre a 'independência funcional' dos médicos e a 'independência funcional' dos juízes e promotores não é de princípio. Nos dois casos, o 'erro funcional' pode matar ou aleijar e isso também faz parte da vida, porque errar é da natureza humana. A diferença está na escala do dano e na consequência do ato para o autor. O erro médico afeta geralmente um indivíduo, o paciente, enquanto o erro do juiz e do promotor afeta a coletividade inteira e o ambiente de forma difusa. O erro médico pode dar processo contra o autor, mas no direito o 'erro funcional' transforma-se na verdade dos juízes e promotores, a chamada 'interpretação pessoal' de um 'independente funcional'. Independência funcional, essa coisa é para poucos, é para a elite (1). No mais das vezes, o que existe é um comportamento altamente dependente do sistema. É como se na travessia do rio os gnus humanos fossem empurrados contra a vontade para a boca dos crocodilos pela manada enlouquecida e esfomeada em busca do pasto distante. Não existem independentes funcionais nessa manada, são todas rêses dependentes do movimento louco da manada e seus instintos. Mas aqui também existe a escolha errada dos líderes da manada. E o erro do líder é tão mais frequente quanto mais despreparado e inexperiente for o líder. O erro do líder inexperiente e incompetente custa caro para a manada. Erro de percepção, erro de julgamento.
Um erro é pior que um crime e precisa ser corrigido. Isso aumenta a responsabilidade dos juízes e promotores e suas instituições, principalmente num país como o Brasil, onde 'manda quem pode e obedece quem tem juízo'. E nessa loucura e irresponsabilidade sistêmica (2), salve-se quem puder.
Notas:
(1) Elite é 'personalidade', pessoa ou grupo de pessoas livres para pensar e agir de forma fundamentada, compreensiva, justa e solidária, para o benefício do grupo, da comunidade, da humanidade e do planeta. 'Elite' é o contrário de 'massa de manobra'. Quem é (ou foi) a elite do Brasil? Cito apenas alguns nomes mais conhecidos, de forma ilustrativa e sem querer esgotar a lista: Dom Pedro II, Gilberto Freyre, Carlos Chagas, Joaquim José da Silva Xavier (o 'Tiradentes'), Rui Barbosa, Antônio Conselheiro, Monteiro Lobato, Johanna Dobereiner, Milton Santos. Exemplos de elite no mundo? Mahatma Gandhi, Andrej Sakharov, Albert Einstein, Martin Luther King. No Brasil e outros lugares do mundo, a elite é perseguida e muitas vezes assassinada, porque elite incomoda aos poderosos, exploradores, usurpadores, matadores e genocidas. A mídia tem sido responsável por deturpar o significado e o sentido de 'elite', frequentemente associando a palavra aos próprios poderosos, exploradores, matadores e genocidas que não têm nada de elite neles: 'tropas de elite', 'comando de elite'. Nada mais contrário, estúpido e errado. Elite nunca forma tropas assassinas, prontas para matar sob comando. Elite constrói as idéias e defende a vida. Elite quer e faz o bem. O contrário disso não é elite. A falta das elites é o problema de Paracatu, do Brasil e do mundo. Uma sociedade que não cria elites e não sabe o significado, o valor e o sentido das elites é uma sociedade escrava, condenada a morrer nas mãos dos poderosos, exploradores, usurpadores, assaltantes, piratas e genocidas. É exatamente por isso que as elites incomodam: porque elas não aceitam a dominação, a exploração, as mentiras e o genocídio. Por isso mesmo os poderosos, exploradores, mentirosos, assaltantes e genocidas temem as elites, e por isso o senso comum, manipulado pelos detentores do poder numa ordem exploradora, mentirosa e genocida perdeu a noção do que é elite e para que ela serve. O nosso sistema de ensino degradado e degradante trabalha contra a formação das elites. A mídia deturpa o significado da elite. Tentam contaminar a palavra e o conceito de elite. Os nossos políticos-marionetes teleguiados perseguem e destróem as elites e criam suas próprias 'elites postiças' ou 'pseudo-elites'. Tudo porque as verdadeiras elites atrapalham sua função de manobristas das massas. Construir uma sociedade justa, livre e solidária sem elites é missão impossível.
(2) Essa lógica sistêmica tem um nome, chama-se concentração de capitais. Ouro é capital 'puro'. O ouro sai do país intensivo em trabalho e vai para o país intensivo em capital. Os juízes e promotores recebem polpudos salários e detêm poder. Eles também concentram capital e poder, são 'capitalistas'. Eles têm o poder de escolhar entre fazer valer as leis elaboradas para atender às vontades dos lobbies capitalistas (as 'leis para inglês ver') ou, se forem líderes capazes, representantes de uma verdadeira elite, fazer valer os interesses do povo, do ambiente e da vida. A evolução do preço do ouro mostra uma valorização exponencial do metal, indicando aquecimento da demanda entre as décadas de 1970 e 1980, e mais notável entre a década de 1990 e o momento atual. Isso significa intensificação do processo de industrialização advindo da globalização. O ouro do Brasil financia a nova aceleração da industrialização e acumulação de capitais da era da globalização. No passado, o Brasil foi descoberto para exportar capitais e importar e manter mão-de-obra escrava, essa foi e continua sendo sua vocação e tradição sistêmicas contra as quais somente os líderes competentes podem se voltar. O ouro que vai, não volta. A disponibilidade de capitais na América do Norte, Europa e Ásia é grande, e no Brasil ela é escassa. Os números podem ter mudado, os valores das transações podem ter aumentado e hoje podemos ter mais leis e mais impostos em relação à época da colônia. Mas, em princípio, pouco mudou, continua valendo o velho modelo de importação do trabalho e exportação do capital. E, como na época da colônia, o sistema também cria e mantém os seus feitores e persegue seus contrafatores.
(3) O autor agradece às seguintes pessoas pelas críticas e sugestoes: Carlos Eduardo Ferreira Pinto, Apolo Heringer Lisboa e Paulo Maurício Serrano Neves.
(4) Saiba mais sobre o genocídio de Paracatu em http://www.alertaparacatu.blogspot.com/.
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