A mídia na corda bamba do Boff
Por Sergio Ulhoa Dani, de Kassel, Alemanha, em 27 de setembro de 2010
O escritor Leonardo Boff critica o que chamou de abuso de liberdade da imprensa brasileira que, ‘na previsão de uma derrota eleitoral, decidiu mover uma guerra acirrada contra o Presidente Lula e a candidata Dilma Rousseff.’ [1]
Os abusos da imprensa denunciados por Boff incluem: ‘o factóide, a ocultação de fatos, a distorção e a mentira direta.’ Curiosamente, esses são abusos geralmente atribuídos ao lulo-petismo. Mas o filósofo Boff não se deixa abalar por essa contradição. Na sua tentativa de socorrer Lula e Dilma, recruta um exército de 30 milhões de pobres, e não hesita em usá-los como escudos: o teólogo da libertação Leonardo Boff transmuta a guerra da imprensa contra Lula e Dilma numa ‘guerra contra os pobres que estão se libertando’, movida por 'uma elite que não aceita que alguém de baixo que chegou lá em cima tenha se tornado o presidente de todos os brasileiros'.
A lógica de Boff caminha na corda bamba. Seu texto revela alergia às elites, parece desconhecer ou desprezar o papel das elites numa democracia. Tecnicamente falando, não pode haver uma democracia verdadeira na qual cada um participa das tomadas de decisões políticas diárias, simplesmente por causa do tamanho da população na sociedade moderna. Mas, curiosamente, Boff parece não reconhecer Lula e Dilma e os lulo-petistas como elites, prefere identificá-los com os pobres, prefere mover uma reação intestina contra os 'estômagos elitistas' da mídia.
Entretanto, todos sabemos que a elite governamental lulo-petista sistematicamente apóia os interesses das elites capitalistas nacionais e transnacionais como meio de exercer o poder, perpetuar-se no poder e acumular mais poder. O lulo-petismo tornou-se a fachada populista de oligarquias econômicas e estatais, uma camuflagem dessas elites, criada para promover os interesses capitalistas e corporativos e garantir a hegemonia dessas oligarquias dominantes.
Por isso não importa que o presidente Lula tenha 'vindo de baixo'. O que importa é que ele tenta entregar o governo às oligarquias regionais, às grandes corporações econômicas e à tecnocracia forjada nos gabinetes, distante da realidade do dia-a-dia, dos sentimentos populares mais genuínos, embora, até o momento, blindadas pelo carisma do atual presidente, e assim protegidas de um sentimento maior de impopularidade. Nesse sentido, constrói uma trajetória perversa e imprevisível na história política e na consolidação democrática do país.
A trajetória do lulo-petismo tem sido facilitada por um Estado capitalista brasileiro modelado para agir em benefício da classe dominante econômica, não em benefício do povo, do público e do ambiente que lhes dão sustentação. A trajetória também tem sido impulsionada pela mais banal e tradicional forma de crescimento econômico brasileira: a exploração predatória e insustentável dos nossos abundantes porém finitos recursos naturais.
Os escândalos, a concertação com as grandes empresas, bancos e multinacionais transformaram o governo do PT em um gerente com cara de povo, mas que enriquece ainda mais estes setores, que destroem o meio ambiente, fazendo-se de pseudo-promotores da sustentabilidade; que financiam campanhas eleitorais e dão agrados a prefeitos e até a juízes; que promovem um modo de vida excludente e consumista, que aumenta a diferença social e cultural, cultivando como valor maior a lei de Gerson, do levar vantagem, e aprofundam a violência sistêmica de uma forma alucinante no Brasil.
Como se vê, os motivos para uma guerra acirrada contra Lula, Dilma e o lulo-petismo são muito maiores que simplesmente 'o medo de uma derrota eleitoral', conforme acredita o teólogo Boff.
A corda bamba de Boff o impede de compreender que, assim como democracias sólidas estão alicercadas em elites bem preparadas, democracias frágeis patinam sobre elites despreparadas. Exatamente por isso a democracia brasileira é um regime frágil, que vários interesses poderosos ameaçam destruir, e cuja persistência para o futuro não está assegurada: exatamente porque as elites governamentais brasileiras das quais Lula e Dilma agora fazem parte é despreparada, ignorante, corrupta, arrogante, violenta, autoritária, corporativa, mentirosa, hipócrita e ditatorial.
Boff conclui seu artigo profetizando sobre o futuro da nossa democracia sob o lulo-petismo e a ‘revolução conceitual’ operada por ele: ‘Vai ser uma democracia cada vez mais participativa e não apenas delegatícia', acredita. 'Esta abria amplo espaço à corrupção das elites e dava preponderância aos interesses das classes opulentas e ao seu braço ideológico que é a mídia comercial’, conclui.
Recomenda-se ao filósofo Boff uma leitura mais atenta das teorias de elite e do marxismo. Uma das semelhancas entre as duas teorias é que tanto elitistas quanto marxistas acreditam que o poder político em um país é sempre controlado por um pequeno grupo de pessoas. A 'elite dominante' na teoria da elite, e a 'classe dominante' na teoria marxista representam a mesma minoria dos políticos que tomam as decisões.
Se Boff não sabe disso, é ingênuo. Se desconsidera isso, é hipócrita. Ainda que não seja nem uma coisa, nem outra, Boff precisa aceitar o mundo como ele é. Ele precisa compreender que a democracia é regida pelas elites, e que nas democracias sólidas as várias elites não-governamentais, incluindo a que ele chama de 'mídia de estômago elitista' devem ter autonomia para controlar os poderes dos governos e do Estado.
Reduzir ou questionar essa autonomia, ainda que seja a pretexto de 'respeitar a autoridade do Presidente' é o caminho certo para o autoritarismo e a ditadura.
Referência:
[1] Boff, L. A mídia comercial em guerra contra Lula e Dilma. ‘Adital’, sexta-Feira, 24 de setembro de 2010, http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=51181
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